“Não existe crime organizado sem a cumplicidade do Estado”


Membros do Fórum Nacional de Segurança Pública explicam o que está errado com o Rio de Janeiro


pesar de ter pego todo mundo de surpresa, a morte da vereadora Marielle Franco não foi uma novidade. Ela era negra, como 70% das vítimas de homicídio no país. Era mulher, como as oito vítimas de feminicídio que todos os dias morrem no Brasil. Era favelada, como os 567 mortos pelo 41º Batalhão da Polícia Militar desde 2011. Por fim, era uma liderança política popular, se tornando a oitava executada somente neste início de 2018.

Mas Marielle se destacava. Superou os desafios, estudou, trabalhou, cuidou dos filhos, se formou em Sociologia na Puc-Rio, conquistou seu espaço, até ser eleita como a quinta vereadora mais votada na cidade do Rio de Janeiro. Uma espécie de conto de fadas dos sonhos para os defensores da meritocracia. Conto esse abreviado com quatro tiros na cabeça aos 38 anos.

Crítica da intervenção federal no Rio de Janeiro, temendo justamente o aumento no já rotineiro abuso da violência do Estado contra o povo pobre, em suas duas últimas semanas de vida ocupou a função de relatora da Comissão da Câmara de Vereadores do Rio, criada para acompanhar a atuação das tropas.

Quatro dias antes de ser morta, havia denunciado em postagem no Facebook as ações do 41º BPM que estava “aterrorizando e violentando os moradores de Acari”. “Nessa semana dois jovens foram mortos e jogados em um valão. Hoje a polícia andou pelas ruas ameaçando os moradores. Acontece desde sempre e com a intervenção ficou ainda pior”, dizia o texto.

Até o momento, todos os indícios divulgados pela investigação apontam para a ação criminosa da própria Polícia Militar. Apesar da ânsia por justiça, com a identificação dos culpados, o assassinato de Marielle é mais um episódio do caos que virou a segurança pública no estado do Rio de Janeiro e muito além de suas fronteiras.

Para tentar entender a complexidade da questão, GALILEU conversou com dois integrantes do Fórum Nacional de Segurança Pública: Rafael Alcadipani, que pesquisa as organizações policiais pela FGV; e Alba Zaluar, antropóloga, uma das maiores especialistas em violência no Rio de Janeiro e professora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj.

A intervenção

No dia 16 de fevereiro, o presidente em exercício Michel Temer assinou o decreto que instalou a primeira intervenção federal em um estado desde a promulgação da Constituição de 1988. Ele se baseou no artigo 34, inciso 3º, que autoriza a União a intervir nos Estados para “pôr termo a grave comprometimento da ordem pública”.

Apesar de não existir nada que aponte para a presença de um militar no cargo de interventor, o escolhido foi um general do exército Walter Braga Netto.

“A intervenção foi uma decisão tomada sem o devido planejamento, sem a reflexão necessária. Pelo que transparece, sem nenhum respaldo técnico”, afirma Alcadipani. “O motivo de ser no Rio é que já abrigou a capital, tem uma mídia forte. O que acontece lá acaba ganhando muito mais ressonância do que acontece no Ceará, por exemplo, que a situação é muito mais delicada.”

Para Rafael, Temer, ao decidir pela intervenção, pensou mais nas eleições do fim do ano que no bem estar do povo fluminense. “Ele quis jogar um pouco para a torcida, mas na prática a situação está piorando. Jogaram o exército brasileiro em uma enrascada nesse experimento mambembe de segurança pública”, contou.

“A intervenção está lá há um mês e produziu poucos resultados, o que já era esperado. Mas a gente não vê uma fala ou ação do interventor de enfrentar as milícias ou mais efetivamente a corrupção policial.”

A polícia

A reportagem de capa da edição de agosto de 2016 da revista GALILEU já denunciava a violência policial no Brasil. Com salários baixos e treinamentos violentos, os policiais são preparados para reproduzir uma lógica de guerra herdada da ditadura.

“Muitos dos policiais militares entram nas favelas dando tiros e quando estão lá dentro continuam atirando, sem entender que se trata de regiões altamente populosas, e que pode atingir inocentes”, diz Zaluar.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2016, foram 4.222 pessoas mortas em decorrência de intervenções policiais. No entanto, o que muita gente não entende quando se depara com reportagens sobre a violência policial, é que os policiais também são vítimas da cultura de violência que perpetra as forças de segurança.

Também em 2016, 453 policiais foram vítimas de homicídio. Os danos, porém, vão além do perigo de ser morto. Uma pesquisa da Uerj mostrou que um policial tem quatro vezes mais chances de cometer suicídio que o restante da população.

“Se o treino do policial é com força bruta, na rua ele descontará isso no suspeito preso em flagrante. Se ele é submisso ao seu superior, acha que o suspeito deve a mesma obediência a ele, reproduzirá o assédio”, afirmou o professor Túlio Viana, professor de Direito Penal da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na reportagem da GALILEU.

Não à toa, pesquisas já demonstraram que mais de 70% dos policiais são à favor da desmilitalirização da Polícia Militar, o que significaria romper com um modelo que sobreviveu à redemocratização, após o fim da ditadura militar.

O poder público, porém, segue a lógica contrária. “Eles jogam o jogo populista, de por mais tropa na rua, que bate, que mata”, afirma Alcadipani. “No lugar de investir no salário dos policiais, melhorar suas condições de trabalho. Fazer uma integração melhor das polícias.”

Como resultado, de acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, em junho de 2016 a população carcerária brasileira ultrapassou pela primeira vez o número de 700 mil pessoas, um aumento de 707% em relação ao ano de 1990.

Desses, a maioria é preta (64% do total), e todos pobres, já que 99% não completou o ensino médio. “O movimento negro tem um papel importante para chamar a atenção para os vícios racistas, tanto no policiamento ostensivo quanto na justiça”, contou Zaluar. “Terminam presos os mais escuros de pele, com vestimenta e endereço vinculado à favela”.

Guerra às drogas

Do total de presos, 28% são por tráfico de drogas. “É mais fácil ficar pegando o varejo do tráfico. Ficar brigando com o pequeno roubador, o pequeno traficante”, afirma Alcadipani. “Esses que estão no morro são o varejo. O atacado está em outro lugar.”

Tanto para Rafael, quanto para Alba Zaluar, o primeiro passo na busca de uma solução mais efetiva para a segurança pública seria rever as políticas para as drogas. Tamanha violência é a prova cabal de que a guerra às drogas não funciona.

Porém, enquanto o mundo começa a tirar o problema das drogas da polícia e a levar para a saúde pública, o Brasil anunciou recentemente, por meio do Ministro do Desenvolvimento Social, Osmar Terra, um endurecimento na política de drogas. Sua justificativa é que “um verdadeiro holocausto” da juventude decorrem “mais do efeito das drogas que da ação do tráfico”.

Porém, o Brasil é um dos países onde menos se morre por uso de drogas no mundo. São cerca de 1,2 mortes a cada 100 mil habitantes. Segundo a lógica de Osmar terra, o suicídio deveria receber muito mais atenção que as drogas pelo Estado brasileiro, já que atinge 5,7 pessoas a cada 100 mil habitantes.

“O deputado Osmar Terra tem tido uma posição bastante prejudicial para uma política de drogas eficaz”, revela Zaluar. “Não há evidências científicas que a maconha faça esse mal todo. Obviamente, mesmo no caso da cocaína e do crack, os cientistas concordam que essas substâncias destroem neurônios, mas assim é o álcool também.”

Não consta na literatura científica, ou em todo o restante da história da humanidade, um caso de morte por overdose de maconha. “A impressão que eu tenho às vezes, vendo tudo que aconteceu agora, é que o Brasil vai ter que morrer muita gente para começar a se conscientizar de que não é assim que se resolve problemas”, desabafa Rafael.

O poder público

Mais do que impedir mortes por uso de drogas, o que não há evidências que aconteça, a guerra às drogas é mantida principalmente porque ela é muito lucrativa. “É muita gente ganhando dinheiro. Inclusive bancos, empresas de fachada, o setor imobiliário, todos sendo usados para lavar dinheiro. E mais um monte de outras coisas que a gente não sabe como é, porque nunca teve uma investigação séria”, diz a antropóloga.

“Eu li muito sobre o crime organizado e tudo começa com a afirmação de que não existe crime organizado sem a cumplicidade de um agente do Estado”, revela. “A investigação séria, que vai fundo, é a que vai e descobre quem são os cabeças, aqueles que financiam. A periferia é a ponta final. Os pequenos criminosos que precisam da proteção da facção para não serem mortos na rua ou na prisão”.

Rafael concorda. O pesquisador da FGV lembra o fato de que os dos últimos governadores do Rio de Janeiro, Rosinha Garotinho e Sérgio Cabral, estão presos. “O crime usa força do Estado. O Estado é poroso ao crime”, garante. “A gente não vê um confronto efetivo ao crime organizado. O que se faz é subir e descer morro. Leva a polícia para atirar no morro. Não desbarata as quadrilhas do colarinho branco. O criminoso preferencial é sempre o favelado. Não se vê a questão mais ampla da criminalidade no Rio de Janeiro.”

Medo

Coincidência ou não, toda essa sensação de violência acaba influenciando a política, principalmente por ser ano de eleição. “As pessoas têm medo. Estão amedrontadas e acham que extirpar o problema, matar, vai resolver”, analisa Alcadipani. “Mas não vai.”

Nessa história, há quem ganhe com a desgraça. “Tem também os que acham que quanto pior, melhor. Aquele que quer se apresentar como salvador, que vai resolver as coisas na base da grossura, do desrespeito aos direitos humanos”, conta Alba.

A mensagem clara é o medo. Intimidar líderes de movimentos por direitos humanos. “Eu mesma senti medo, pois parte do meu trabalho é lutar pelos direitos do Rio.”

Mas ainda há razões para acreditar. Um estudo da FGV mostra que apenas 7% das mensagens nas redes sociais que se referiam à morte de Marielle vinham com críticas à esquerda e mensagens como “bandido bom é bandido morto”.

Os 88% restantes preferiram destacar o luto ou a trajetória da vereadora. “O que eu vi na manifestação foi pessoas se encheram de coragem para continuar a luta”, lembra Zaluar. “Fico até aqui arrepiada de lembrar.”

Para que Marielle Franco, mesmo para quem a conheceu diante a tragédia, continue presente. Afinal, sua luta é de toda a sociedade.

 

FONTE: REVISTA GALILEU