A dinâmica geopolítica do Oriente Médio sempre esteve marcada por alianças complexas, conflitos prolongados e a presença de atores não estatais que operam em diversas regiões. Entre esses, as milícias armadas por procuração apoiadas pelo Irã têm desempenhado um papel central na política externa e de segurança da República Islâmica desde a Revolução Islâmica de 1979. No contexto atual, a ameaça de retaliação do Irã ao suposto assassinato de Ismail Haniyeh, líder do Hamas, em Teerã, levanta questões cruciais sobre o potencial envolvimento desses grupos em um ataque contra Israel.
Raízes da Política de Procuração do Irã
A política de armar milícias regionais por parte do Irã remonta ao período pós-Revolução Islâmica, quando a nação, recém-emergida de uma revolução interna, enfrentava uma hostilidade crescente do Ocidente, especialmente dos Estados Unidos. Antes de 1979, o Irã sob o governo do Xá Mohammad Reza Pahlavi era um aliado próximo dos EUA, recebendo armamentos avançados, como os caças F-14 Tomcat. Contudo, após a Revolução Islâmica e a crise dos reféns na embaixada dos EUA em Teerã, o fluxo de armas e o apoio militar cessaram abruptamente. Essa mudança forçou o Irã a reavaliar suas estratégias de defesa e segurança.
A Guerra Irã-Iraque (1980-1988) teve um impacto devastador sobre o arsenal militar iraniano, com a destruição de grande parte de seus recursos bélicos. Além disso, as sanções internacionais subsequentes, especialmente aquelas relacionadas ao programa nuclear iraniano, impediram o acesso do Irã a novas armas e tecnologias avançadas. Enquanto Israel e os estados do Golfo, aliados dos EUA, continuavam a receber armamentos modernos, o Irã optou por uma estratégia assimétrica: o desenvolvimento de forças por procuração que pudessem atuar como uma extensão de sua influência regional e como um mecanismo de contenção contra seus adversários, incluindo Israel e os Estados Unidos.
O Surgimento de Aliados Regionais
O apoio do Irã a milícias regionais começou de forma significativa na década de 1980, com o fortalecimento de forças xiitas no Líbano, que estavam em luta contra a ocupação israelense. Esse apoio resultou na formação do Hezbollah, uma das milícias mais poderosas e influentes na região até hoje. O sucesso do Hezbollah serviu como um modelo para futuras operações de procuração iranianas, incentivando Teerã a expandir seu apoio a outros grupos militantes em diferentes países.
A invasão do Iraque liderada pelos EUA em 2003, que resultou na derrubada do ditador Saddam Hussein, ofereceu ao Irã uma oportunidade estratégica para aumentar sua influência no país vizinho. O vácuo de poder criado pela queda de Hussein permitiu que o Irã apoiasse diversas milícias xiitas no Iraque, muitas das quais se mobilizaram em 2014 para combater o Estado Islâmico (ISIS). Essas milícias, conhecidas coletivamente como Forças de Mobilização Popular (FMP), tornaram-se uma força política e militar formidável no Iraque, armadas com foguetes, drones e outros armamentos fornecidos pelo Irã.
No cenário sírio, o Irã se tornou um aliado crucial do presidente Bashar al-Assad durante a guerra civil do país, fornecendo apoio militar significativo através de milícias por procuração e do Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica (IRGC). Essa aliança não apenas fortaleceu a posição de Assad, mas também garantiu ao Irã uma presença estratégica na Síria, que faz fronteira com Israel.
O Papel das Milícias na Estratégia do Irã
As milícias armadas pelo Irã fazem parte do que é conhecido como o “Eixo de Resistência”, uma aliança de grupos e estados que se opõem à presença dos EUA e de Israel no Oriente Médio. Esses grupos não são apenas aliados políticos, mas também representam uma extensão direta do poder militar iraniano na região. Entre os principais aliados do Irã estão:
– Milícias Iraquianas: Com uma força estimada em 180 mil combatentes, as milícias xiitas no Iraque, organizadas principalmente sob as Forças de Mobilização Popular, são uma força significativa na política e na segurança do país. Esses grupos, alguns dos quais têm reivindicado ataques contra forças americanas no Iraque, estão bem armados com foguetes, drones e outros equipamentos fornecidos pelo Irã.
– Hezbollah no Líbano: Formado em 1982, o Hezbollah é possivelmente o mais poderoso de todos os grupos por procuração iranianos. Com um arsenal estimado em 150 mil foguetes e mísseis, incluindo mísseis guiados com precisão, o Hezbollah representa uma ameaça direta a Israel. O grupo também possui drones e sistemas de mísseis terra-ar, com uma força de combate que pode chegar a 100 mil combatentes treinados.
– Grupos Militantes Palestinos: Tanto o Hamas quanto a Jihad Islâmica Palestina têm recebido apoio significativo do Irã ao longo dos anos. Embora ambos os grupos tenham sido duramente atingidos pela ofensiva israelense em Gaza desde o início do conflito em outubro, eles ainda mantêm capacidades de resistência e poderiam desempenhar um papel em um ataque coordenado.
– Houthis no Iêmen: Seguindo a fé xiita Zaidi, os Houthis controlam a capital do Iêmen, Sanaa, e têm demonstrado capacidade de lançar ataques com drones e mísseis que ameaçam o transporte marítimo no Mar Vermelho e podem atingir Israel. Embora o grau de comando direto do Irã sobre os Houthis seja debatido, a aliança entre os dois é clara e estratégica.
Possíveis Cenários de Retaliação
Diante do suposto assassinato de Ismail Haniyeh, o Irã pode optar por uma retaliação utilizando suas forças por procuração. Um exemplo recente de como essa retaliação poderia ocorrer foi observado em abril, quando, após um ataque israelense a um complexo da embaixada iraniana na Síria, o Irã lançou uma série de ataques com drones, mísseis de cruzeiro e balísticos contra Israel. Embora muitos desses projéteis tenham sido interceptados por defesas aéreas, a capacidade do Irã de coordenar tais ataques demonstra a ameaça que essas milícias podem representar.
Se o Irã decidir envolver o Hezbollah em uma retaliação, o cenário poderia se tornar ainda mais grave. Com um arsenal vasto e uma força de combate altamente treinada, o Hezbollah tem a capacidade de sobrecarregar as defesas aéreas israelenses, incluindo o sistema Iron Dome. Isso aumentaria significativamente o risco de baixas e poderia levar a uma escalada que muitos especialistas temem que possa desencadear uma guerra regional mais ampla.
Além disso, outros grupos por procuração, como as milícias iraquianas e os Houthis, poderiam realizar ataques coordenados em diferentes frentes, complicando ainda mais a capacidade de resposta de Israel e de seus aliados.
O papel das milícias por procuração armadas pelo Irã é central na estratégia de defesa e influência regional da República Islâmica. Esses grupos oferecem ao Irã uma maneira de projetar poder e influência além de suas fronteiras, ao mesmo tempo em que mantêm uma negação plausível em relação a ações diretas. Em um cenário de escalada, como o que poderia surgir em resposta ao assassinato de um líder do Hamas, esses grupos poderiam desempenhar um papel crucial em qualquer retaliação contra Israel, aumentando o risco de uma guerra regional que envolva múltiplos atores e frentes de combate. A história e a capacidade desses grupos destacam a complexidade e o perigo das atuais tensões no Oriente Médio, onde qualquer faísca pode desencadear um conflito de proporções devastadoras.