O marxismo, desde seu surgimento, tem passado por transformações contínuas que refletem as mudanças do mundo que ele busca descrever e transformar. A visão de que o marxismo é uma tradição viva que requer constante renovação e reconstrução é fundamental para entender sua evolução. À medida que a globalização molda cada vez mais a realidade contemporânea, torna-se necessário que o marxismo assuma um caráter global, o que implica repensar suas bases materiais à luz das novas formas de mercantilização que surgem no capitalismo global.
Michael Burawoy, renomado sociólogo marxista, propõe uma nova periodização do marxismo, baseada em três ondas de mercantilização: a mercantilização do trabalho, do dinheiro e, mais recentemente, da natureza. Cada uma dessas ondas gerou um contramovimento marxista específico, que se manifestou em diferentes configurações teóricas e práticas. Burawoy argumenta que, à medida que o trabalho foi mercantilizado no século XIX, o marxismo respondeu com uma visão de libertação das correntes da exploração. Quando o dinheiro foi mercantilizado no século XX, o marxismo reagiu com a imaginação de um estado regulador da economia. E, agora, com a crescente mercantilização da natureza, o marxismo responde com a ideia de uma sociedade civil global que molda a governança, a produção e o consumo de forma mais democrática e sustentável.
As três ondas de mercantilização e o desenvolvimento do Marxismo
Burawoy divide a história do marxismo em três fases, ou ondas, cada uma correspondendo a um processo de mercantilização e a uma nova configuração teórica do marxismo. A primeira fase, que ele chama de “marxismo clássico”, surgiu em resposta à mercantilização do trabalho. Durante a Revolução Industrial, o trabalho foi transformado em uma mercadoria, o que levou a uma exploração massiva da classe trabalhadora. O marxismo clássico, ancorado nas ideias de Karl Marx e Friedrich Engels, ofereceu uma visão utópica de emancipação dos trabalhadores e da abolição da exploração capitalista.
A segunda fase é marcada pela mercantilização do dinheiro e o surgimento do “marxismo soviético, ocidental e do Terceiro Mundo”, que se concentra na regulação estatal da economia. Esse período, que se estende pelo século XX, reflete as respostas marxistas às crises do capitalismo financeiro e ao crescimento das economias de planejamento estatal, como a União Soviética. A regulação estatal da economia foi vista como uma maneira de mitigar os efeitos devastadores da especulação financeira e da instabilidade econômica gerada pelo capitalismo descontrolado.
A terceira fase, que Burawoy chama de “marxismo sociológico”, surge em resposta à mercantilização da natureza. Com o avanço do neoliberalismo e a globalização, a natureza e seus recursos tornaram-se mercadorias em uma escala sem precedentes, o que levou a uma degradação ambiental alarmante. O marxismo dessa terceira onda, portanto, busca construir um socialismo baseado em uma sociedade civil global que seja capaz de moldar processos democráticos participativos e implementar transformações locais em um contexto de crise ecológica e econômica global.
a sociedade civil e as utopias reais
Burawoy sugere que o “marxismo de terceira onda” se diferencia de suas encarnações anteriores ao se concentrar em “utopias reais”. Em vez de esperar por uma revolução global, essa nova configuração do marxismo promove projetos transformadores ancorados em experimentos concretos em espaços locais. Esses projetos dependem de processos democráticos participativos, que buscam, passo a passo, a construção de uma sociedade alternativa ao capitalismo. Para Burawoy, a defesa de uma sociedade civil independente, livre das amarras do estado capturado pelo mercado, torna-se ainda mais importante na atual conjuntura.
Essa perspectiva é crucial, pois reconhece que as lutas anticapitalistas não podem mais se concentrar exclusivamente no nível do estado nacional. A globalização tornou o capitalismo uma força transnacional, e a resposta marxista deve, portanto, ser igualmente global. Burawoy nos encoraja a pensar em formas de resistência e transformação que transcendam as fronteiras nacionais e se conectem a movimentos globais que buscam justiça social, econômica e ambiental.
A renascença do marxismo de Gramsci e o neogramscianismo
Nesse contexto de renovação do marxismo, o pensamento de Antonio Gramsci ganha nova relevância. Vishwas Satgar, teórico marxista contemporâneo, propõe uma releitura do marxismo de Gramsci à luz das transformações globais contemporâneas. Gramsci, conhecido por sua teoria da hegemonia e sua ênfase no papel da sociedade civil na luta contra o capitalismo, tem sido tradicionalmente interpretado dentro de uma moldura marxista ocidental ou como um pensador restrito ao contexto italiano. No entanto, Satgar argumenta que, nas últimas décadas, o pensamento de Gramsci foi globalizado, influenciando novas abordagens na economia política global e nas relações internacionais.
O marxismo neogramsciano, que emerge dessa releitura, oferece ferramentas teóricas poderosas para entender o capitalismo global contemporâneo. Ele se concentra na formação de classes transnacionais, no papel do neoliberalismo como força disciplinadora e nas formas de governo que mantêm o status quo capitalista, como o constitucionalismo neoliberal e a “revolução passiva”. Satgar destaca que essa abordagem ajuda a explicar a neoliberalização de países como a África do Sul pós-apartheid, onde a transição política foi acompanhada pela implementação de políticas neoliberais que mantiveram intactas as estruturas econômicas capitalistas.
Desafios para o marxismo contemporâneo
Embora o marxismo de terceira onda e o neogramscianismo forneçam novas ferramentas para entender o capitalismo global, Satgar aponta alguns desafios que ainda precisam ser enfrentados. Em particular, ele enfatiza a necessidade de uma análise mais robusta da crise ecológica que o capitalismo enfrenta. A mercantilização da natureza não pode ser dissociada das lutas anticapitalistas, e é crucial que o marxismo contemporâneo incorpore uma perspectiva ecológica mais forte em suas análises.
Além disso, Satgar defende um maior engajamento com políticas e alternativas anticapitalistas que vão além da mera crítica do sistema atual. Ele sugere que os movimentos de resistência contra-hegemônica precisam desenvolver propostas concretas para uma transformação social e econômica que possa desafiar efetivamente o capitalismo global.
O marxismo, como tradição viva, continua a se renovar à medida que enfrenta os desafios impostos pelas novas formas de mercantilização e financeirização no capitalismo global. Burawoy e Satgar oferecem visões inovadoras que integram as lutas contra a exploração do trabalho, do dinheiro e da natureza em uma abordagem marxista globalizada. Ao repensar a base material do marxismo e incorporar uma análise crítica da sociedade civil e das dinâmicas transnacionais do capitalismo, essas novas configurações teóricas fornecem ferramentas poderosas para a transformação social. A renovação do marxismo é, portanto, essencial para enfrentar os desafios de um mundo em constante mudança.