Sobre o “lucro” de R$ 500 bilhões do Banco Central – o problema está nas consequências

Vista da sede do Banco Central, em Brasília

Ao fim de maio, a notícia foi onipresente nas seções de economia dos jornais: nos primeiros cinco meses de 2020, o Banco Central teve um lucro de espantosos R$ 500 bilhões em decorrência de suas operações com o dólar.

Falando mais diretamente: como o dólar saltou de R$ 4,02 no fim de dezembro de 2019 para R$ 5,35 ao fim de maio de 2020, as reservas internacionais do Banco Central, que se mantiveram em torno de US$ 350 bilhões, apuraram um ganho contábil de quase R$ 500 bilhões neste período, por meio da simples marcação a mercado.

E isso dá quase 7% do PIB.

Uma parte deste valor seria repassado ao Tesouro. Já há um projeto de lei exigindo que pelo menos 80% seja repassado.

Até aqui, nada fora do lugar. Esse, aliás, é o procedimento padrão. A cada semestre, o BC apura ganhos ou perdas não-realizados das reservas internacionais devido à variação do dólar e acerta as contas com o Tesouro Nacional.

No entanto, como agora os ganhos foram muito acima da média, isso está atiçando o apetite alheio.

Dado que o déficit primário para este ano, por causa da pandemia da Covid-19, está estimado em inéditos 10% do PIB, o Tesouro já está obrigado a levantar essa mesma quantia no mercado financeiro apenas para pagar suas despesas correntes (excluindo juros). Mas como houve R$ 500 bilhões em ganhos contábeis no Banco Central, quem resiste?

Como funciona

Em tese, o Banco Central não pode financiar o Tesouro. Ele não pode criar moeda e repassar essa moeda para o Tesouro. Isso foi proibido pela Lei de Responsabilidade Fiscal, artigos 35 e 39. No entanto, em terras tupiniquins, leis costumam ser apenas teorias, e não necessariamente são observadas na prática. O que se observa é que, usualmente, a política monetária coça as costas da fiscal e vice-versa.

A cada semestre em que o dólar sobe, o Banco Central apura o ganho contábil das reservas, cria o equivalente em reais novos e os credita na conta do Tesouro (“afinal, é um ganho da União”). Em contrapartida, nos semestres em que o dólar cai, e o BC apura prejuízo contábil com as reservas, o Tesouro entrega para o BC um vale, ou seja, um título público (“afinal, o BC não pode ficar descapitalizado”).

Portanto, ficamos assim: quando há lucro contábil com as reservas internacionais, o Banco Central cria o equivalente em moeda e repassa ao Tesouro. Quando há prejuízo contábil, o Tesouro cria o equivalente em títulos públicos e os repassa ao Banco Central.

Em uma conta, entra dinheiro vivo; na outra, um vale. Sob a ótica do Tesouro, “se o dólar subir, eu ganho; se cair, você perde”.

Em ambos os cenários, o balanço do Banco Central incha continuamente: quando há prejuízo contábil, entram mais títulos do Tesouro na carteira de ativos. Quando há lucro contábil, mais moeda é criada (toda moeda criada é um passivo do BC) e repassada ao Tesouro — no caso, para a Conta Única que o Tesouro tem junto ao Banco Central e que é um passivo do Banco Central.

O gráfico abaixo mostra a evolução do balanço do banco central: os ativos totais (linha verde), os ativos com governo federal (linha vermelha) e os passivos com o governo federal (linha azul).

Gráfico 1: ativo total do Banco Central (linha verde), ativos com governo federal (linha vermelha) e passivos com o governo federal (linha azul).

Os ativos com o governo federal referem-se basicamente a todos os títulos do Tesouro na carteira do Banco Central. Os passivos com o governo federal incluem principalmente os depósitos do Tesouro no Banco Central (Conta Única). E o ativo total representa todo o balanço do Banco Central (que é igual ao passivo mais o patrimônio líquido).

Observe como o ativo total (linha verde) disparou: é basicamente a valorização das reservas internacionais, em reais.

E observe como a Conta Única do Tesouro caiu: por causa da recessão econômica causada pelo surto do novo coronavíruis, as receitas tributárias do governo federal desabaram.

Tudo o mais constante, quando o BC repassar o lucro nominal com as reservas internacionais para o Tesouro — ou seja, quando o BC criar reais e repassar à Conta Única do Tesouro —, a linha azul irá disparar.

A revogação e a revogação da revogação

Foi exatamente para evitar essa arma de dilatação em massa que o Congresso aprovou em 2019 a lei 13.820, que determina que o Banco Central acumule eventuais ganhos não-realizados em uma conta de resultados a serem compensados por perdas futuras.

Com isso, o intuito era extinguir a máquina contábil de inchaço.

Mas não deu.

Há uma brecha (contestável) no artigo 5o da referida lei, que diz que em condições de severas restrições de liquidez para a rolagem da dívida pública, o Conselho Monetário Nacional (CMN) pode autorizar a transferência do lucro cambial para o Tesouro.

Ou seja, utilizando um artigo da própria lei que foi criada para evitar isso, o Conselho Monetário Nacional poderá determinar que o BC crie reais e os transfira ao Tesouro com respaldo dos ganhos não-realizados.

Logo, no final, nada saiu do lugar e tudo continua na mesma.

Nem a dívida bruta do setor público nem a dívida líquida se alterariam com a eventual manobra. No entanto, melhoraria o caixa do Tesouro (o “colchão de liquidez”) em contrapartida à fragilização do BC (que aumentaria seu passivo, linha azul).

A consequência para nós

Além de criar dinheiro previamente inexistente para o Tesouro — o que, por si só, contém um claro potencial inflacionário —, o principal problema da manobra é que, caso o dólar caia no segundo semestre, será necessária uma recapitalização do BC por meio de emissão de dívida pública. Com efeito, nem precisamos esperar: neste mês, o dólar caiu de R$ 5,33 para cerca de R$ 4,90.

Portanto, os efêmeros R$ 500 bi já não existem: o ganho não-realizado já pode estar abaixo de R$ 350 bi.

Como explicou o economista Fernando Ulrich, o CMN pode indicar ao mercado duas sinalizações ruins com a medida: a) um piso implícito para o dólar, com BC e Tesouro alinhados em evitar que o dólar caia abaixo do nível de 30 de junho, pois tanto o BC se descapitalizará como o Tesouro terá um prejuízo, e b) um incentivo para futuras jabuticabas monetárias, por meio das quais o Tesouro buscará altas do dólar para extrair ganhos bem reais a partir de ganhos fictícios de reservas que nem vendidas foram.

Em ambos os casos, o brasileiro ficará com seu poder de compra abaixo do que poderia ser.