O crescimento da demanda por serviços de cuidado é um fenômeno global em rápida expansão, com profundas implicações sociais, econômicas e políticas. De acordo com o relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 2030, o número de pessoas que necessitarão de serviços de cuidado deve atingir 2,3 bilhões, um aumento em relação aos 2,1 bilhões de 2015. Este crescimento é impulsionado por múltiplos fatores, incluindo o envelhecimento populacional e as mudanças nas dinâmicas familiares, como a maior participação das mulheres no mercado de trabalho. Esses fatores têm levado os países a reavaliar seus sistemas de cuidado, especialmente no que diz respeito a populações vulneráveis, como crianças, idosos e pessoas com deficiência. Este artigo explora as raízes desse aumento, as desigualdades associadas à distribuição do trabalho de cuidado e os desafios que os países enfrentam na criação de soluções adequadas para responder a essa demanda.
1. Envelhecimento populacional e a demanda por cuidado
Um dos principais fatores que impulsionam a crescente demanda por cuidados é o envelhecimento populacional. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 28 milhões de brasileiros têm 60 anos ou mais, representando cerca de 13% da população. As projeções indicam que, até 2043, esse percentual pode chegar a 25%. Esse cenário não é exclusivo do Brasil; muitos países ao redor do mundo estão enfrentando um rápido envelhecimento da população. Com o aumento da expectativa de vida e a diminuição das taxas de natalidade, a proporção de idosos em relação à população economicamente ativa cresce, o que coloca pressão sobre os sistemas de cuidado existentes.
O envelhecimento populacional traz à tona a necessidade de serviços especializados, tanto no cuidado direto, como em atividades como ajudar na alimentação, na higiene e na administração de medicamentos, quanto no cuidado indireto, como cozinhar e manter o ambiente adequado para os cuidados de saúde. No entanto, a capacidade de as famílias ou o Estado fornecerem esses cuidados varia consideravelmente entre as nações, resultando em um desafio global de organização e provisão de serviços.
2. Novas configurações familiares e a inserção das mulheres no mercado de trabalho
Outro fator significativo na ampliação da demanda por cuidados é a mudança nas configurações familiares. Historicamente, o trabalho de cuidado foi associado às mulheres, sendo considerado uma extensão das responsabilidades domésticas e familiares. No entanto, desde a década de 1970, com o aumento da participação feminina no mercado de trabalho, a capacidade das mulheres de fornecer cuidados em tempo integral foi drasticamente reduzida. No Brasil, por exemplo, a participação das mulheres no mercado de trabalho cresceu de 18% para 50% em cinco décadas, de acordo com o IBGE.
Essa transformação na força de trabalho alterou o equilíbrio entre trabalho remunerado e não remunerado, criando uma “crise de cuidado”. As mulheres, que tradicionalmente cuidavam de crianças, idosos e outras pessoas dependentes, agora enfrentam o desafio de conciliar suas responsabilidades profissionais com as domésticas. Em muitos casos, a solução tem sido a terceirização desse trabalho, por meio da contratação de cuidadores profissionais ou da utilização de serviços de instituições privadas. No entanto, essa solução é acessível apenas para uma parcela da população, especialmente em países onde a oferta de serviços de cuidado públicos é limitada.
3. A distribuição desigual do trabalho de cuidado
A questão da desigualdade na distribuição do trabalho de cuidado é um tema central no debate sobre o cuidado. Estudos revelam que, em média, as mulheres dedicam muito mais tempo ao trabalho não remunerado de cuidado do que os homens. Segundo o relatório da OIT de 2018, em 64 países analisados, as mulheres gastam, em média, 4 horas e 25 minutos por dia com esse tipo de trabalho, enquanto os homens dedicam apenas 1 hora e 23 minutos. Essa diferença reflete uma divisão de trabalho profundamente enraizada em construções culturais e sociais, que associam o cuidado à “natureza feminina” e ao papel tradicional das mulheres dentro das famílias.
Além da carga desigual de trabalho, o cuidado é frequentemente visto como uma expressão de amor e devoção, o que, em muitas sociedades, leva à expectativa de que ele seja prestado de forma gratuita. Essa percepção dificulta a valorização econômica do trabalho de cuidado, seja no contexto doméstico ou profissional, e perpetua a invisibilidade do esforço envolvido nessas atividades. A crescente mercantilização dos serviços de cuidado em alguns países do hemisfério norte, aliada à criação de políticas públicas para regulamentar e financiar esses serviços, contrasta com a realidade de países da América Latina, onde a responsabilidade recai majoritariamente sobre as famílias.
4. O regime de cuidado na américa latina: a centralidade das famílias
Na América Latina, o regime de cuidado é amplamente familialista, com as famílias desempenhando um papel central na prestação de serviços para crianças, idosos e pessoas com deficiência. No Brasil, a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2017-2018, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas – IBGE, mostrou que apenas 17,6% dos domicílios contratam serviços de cuidado, o que significa que 82,4% dos lares brasileiros atendem suas necessidades de cuidado sem recorrer ao mercado formal, dependendo exclusivamente dos membros da família, em sua maioria, mulheres.
Embora as famílias tenham historicamente desempenhado esse papel, o aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho e o envelhecimento populacional colocam em risco essa estrutura. Muitas famílias não possuem os recursos financeiros necessários para contratar cuidadores formais ou acessar serviços privados, e a oferta pública de cuidados continua limitada. O resultado é que, em grande parte, os cuidados continuam a ser fornecidos informalmente por mulheres que equilibram múltiplas responsabilidades.
5. Políticas públicas e iniciativas de cuidado
Diante desses desafios, os países têm adotado diferentes abordagens para responder à crescente demanda por cuidados. Nos países do hemisfério norte, por exemplo, o Estado desempenha um papel central, com a criação de instituições públicas de acolhimento, a regulamentação e a profissionalização do trabalho de cuidado e a expansão de políticas de financiamento para esses serviços. Essas medidas têm como objetivo não apenas garantir que os cuidados sejam prestados de maneira adequada, mas também aliviar a carga das famílias, especialmente das mulheres.
Na América Latina, embora tenham sido feitos alguns avanços em termos de legislação e políticas públicas, como o Estatuto do Idoso no Brasil e a Política Nacional do Idoso, a implementação dessas iniciativas ainda enfrenta desafios significativos. As instituições públicas de longa permanência para idosos, por exemplo, atendem menos de 1% da população idosa, e muitos dos programas existentes são localizados e limitados em alcance. O Programa de Acompanhamento de Idosos (PAI), criado pela prefeitura de São Paulo em 2012, é uma das poucas iniciativas que buscam fornecer assistência integral a pessoas idosas em situação de vulnerabilidade. No entanto, programas como esse são raros, e a maioria das políticas públicas voltadas para a terceira idade se concentra em indivíduos que ainda possuem autonomia.
6. A importância do trabalho de cuidado para o bem-estar social
Os avanços na pesquisa sobre o cuidado trouxeram à tona a importância desse trabalho para o bem-estar social. Inicialmente visto como uma necessidade restrita a situações de dependência, o conceito de cuidado foi expandido para incluir uma dimensão universal: qualquer pessoa pode, em algum momento da vida, se encontrar em uma situação de fragilidade e dependência. Assim, o cuidado é fundamental para garantir a saúde e o bem-estar de todos os membros da sociedade, independentemente da idade ou condição física.
No entanto, a valorização desse trabalho ainda enfrenta barreiras culturais e econômicas. O trabalho de cuidado, especialmente quando realizado por mulheres em contextos familiares, é muitas vezes desvalorizado e invisibilizado. Além disso, a mercantilização crescente do cuidado, especialmente em países desenvolvidos, levanta questões sobre a acessibilidade e a qualidade desses serviços, principalmente para as populações de baixa renda.
A crescente demanda por serviços de cuidado, impulsionada pelo envelhecimento populacional e pelas novas configurações familiares, apresenta desafios significativos para os países em termos de organização e provisão de cuidados. Embora alguns países tenham avançado na regulamentação e no financiamento do trabalho de cuidado, a desigualdade na distribuição desse trabalho, particularmente em relação ao gênero, permanece uma questão central.
Na América Latina, o modelo familialista, no qual as famílias, especialmente as mulheres, assumem a responsabilidade pelo cuidado, ainda é predominante. No entanto, esse sistema está sob pressão, e a necessidade de políticas públicas abrangentes que apoiem tanto os cuidadores quanto os beneficiários desses serviços é urgente. O cuidado deve ser reconhecido como um trabalho essencial, com impacto direto no bem-estar social, e a criação de soluções que garantam sua provisão de maneira equitativa e acessível é fundamental para enfrentar os desafios do futuro.