No dia 21 de setembro, o Brasil celebra o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência. Esta data, mais do que uma comemoração, é um marco de resistência e luta por equidade, visibilidade, inclusão e justiça para uma população que ainda enfrenta enormes barreiras sociais, econômicas e políticas. Movimentos organizados de pessoas com deficiência, cientes da urgência de transformar essa realidade, lançaram a “Carta de Brasília – Pessoas com Deficiência na Luta por Equidade”. O documento denuncia os entraves que atrasam a efetivação das políticas públicas e chama atenção para o capacitismo estrutural que permeia a sociedade.
O capacitismo estrutural: raiz da exclusão
A Carta de Brasília destaca que, apesar dos avanços legislativos, as conquistas no papel ainda não se refletem na vida cotidiana das pessoas com deficiência. O capacitismo, uma forma de opressão e discriminação baseada na capacidade física e mental, estrutura a sociedade de maneira a marginalizar aqueles que não se encaixam em um ideal de “normalidade” ou “funcionalidade”. Essa opressão vai além da discriminação individual; está profundamente enraizada nas instituições, práticas e crenças sociais, muitas vezes de maneira inconsciente.
O capacitismo estrutural é perpetuado por um sistema que hierarquiza os corpos, valorizando aqueles que se aproximam de um padrão de beleza e eficiência física e mental, enquanto relega à margem os corpos que desviam dessa norma. Essa discriminação é agravada pela interseccionalidade de outros marcadores sociais, como raça, gênero, classe social e etnia. Pessoas com deficiência que pertencem a grupos historicamente marginalizados, como a juventude negra, as comunidades indígenas e populações empobrecidas, enfrentam formas ainda mais agudas de violação de direitos.
Dados alarmantes: educação e mercado de trabalho
Os números apresentados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam o tamanho do desafio: a taxa de analfabetismo entre pessoas com deficiência é de 19,5%, enquanto a taxa geral de analfabetismo no Brasil é de 4%. Isso significa que quase um em cada cinco brasileiros com deficiência não sabe ler ou escrever, o que limita severamente suas oportunidades de crescimento pessoal e profissional.
Além disso, a participação dessa população no mercado de trabalho é extremamente desigual. Apenas 29% das pessoas com deficiência fazem parte da força de trabalho, em comparação com 66% da população em geral. Isso não apenas reflete a falta de inclusão, mas também demonstra o impacto do capacitismo no acesso ao emprego e na autonomia econômica. Mesmo quando inseridos no mercado de trabalho, as pessoas com deficiência frequentemente enfrentam discriminação, desvalorização e a ausência de acessibilidade nos ambientes laborais.
Violação de direitos humanos: casos chocantes de exploração
A Carta de Brasília denuncia que pessoas com deficiência continuam a ser vítimas de graves violações de direitos humanos. O documento destaca um caso emblemático relatado pelo Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2024: Sônia Maria de Jesus, uma mulher negra e surda bilateral, foi mantida em condições análogas à escravidão, impedida de aprender Libras ou qualquer outro idioma. Este é apenas um exemplo extremo de uma realidade cotidiana para muitas pessoas com deficiência, que, além de enfrentarem exclusão e discriminação, são frequentemente submetidas a abusos e violência.
Esse cenário de exploração reflete a maneira como o capacitismo e outros sistemas de opressão, como o racismo e o sexismo, se entrelaçam para subjugar certos grupos de pessoas com deficiência. A interseccionalidade desses marcadores sociais faz com que mulheres, negros, indígenas e pessoas pobres com deficiência sejam as principais vítimas das piores formas de exclusão e violência.
Avanços legislativos: uma realidade que ainda precisa ser conquistada
Nos últimos anos, o Brasil fez importantes avanços legislativos no que diz respeito aos direitos das pessoas com deficiência. A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, promulgada em 2015, é um marco legal fundamental. Ela garante direitos como acessibilidade, igualdade de oportunidades, inclusão no mercado de trabalho, educação inclusiva e acesso à saúde.
No entanto, a implementação dessas políticas ainda enfrenta muitos obstáculos. A falta de fiscalização, o descaso de setores públicos e privados e a ausência de conscientização sobre a importância da inclusão retardam a aplicação dessas leis. Muitas vezes, o que está previsto em lei não se traduz em práticas que transformem a vida das pessoas com deficiência.
A realidade demonstra que o Brasil ainda não conseguiu garantir o pleno exercício da cidadania para essa população. As barreiras vão desde a falta de acessibilidade física em espaços urbanos e transportes públicos até a ausência de tecnologias assistivas que permitam a participação de pessoas com deficiência no ambiente escolar e no mercado de trabalho. Esse abismo entre o avanço das políticas sociais e a efetividade dessas ações na vida cotidiana das pessoas com deficiência revela o quanto ainda é necessário lutar para garantir seus direitos.
Inclusão digital: um desafio urgente
A Carta de Brasília também aponta para a necessidade de um diálogo mais profundo sobre a inclusão digital das pessoas com deficiência. Em um mundo cada vez mais conectado, onde o acesso à internet e às tecnologias digitais é fundamental para o exercício da cidadania, a exclusão digital agrava ainda mais as desigualdades enfrentadas por essa população.
Garantir que as pessoas com deficiência tenham acesso a tecnologias assistivas, plataformas inclusivas e à internet é essencial para que possam participar ativamente da vida social, política e econômica. No entanto, a inclusão digital ainda é um desafio significativo. Muitas pessoas com deficiência não têm acesso a dispositivos adaptados ou a conteúdos acessíveis, como sites e aplicativos que sigam as diretrizes de acessibilidade.
A falta de inclusão digital também impede que as pessoas com deficiência acessem serviços públicos essenciais, como saúde, educação e benefícios sociais. Em muitos casos, essas barreiras tecnológicas resultam em maior isolamento e dificuldade para exercer direitos básicos.
A luta continua: construindo um futuro inclusivo
Embora tenha havido avanços importantes, como a Lei Brasileira de Inclusão, o caminho para a plena equidade das pessoas com deficiência no Brasil ainda é longo. O Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência serve como um lembrete de que essa luta está longe de terminar. A inclusão plena só será possível quando houver uma mudança cultural profunda, que desafie o capacitismo estrutural e reconheça o valor intrínseco de todas as pessoas, independentemente de suas capacidades físicas ou mentais.
Essa mudança exige um esforço conjunto da sociedade civil, dos movimentos sociais, das instituições públicas e privadas e do poder político. A Carta de Brasília representa uma convocação para que todos se unam em torno de um objetivo comum: construir uma sociedade inclusiva e equitativa, onde as pessoas com deficiência tenham seus direitos plenamente reconhecidos e respeitados.
O Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência é, acima de tudo, um chamado à reflexão e à ação. As barreiras enfrentadas por essa população são muitas e diversas, mas a raiz de grande parte desses desafios é o capacitismo estrutural, que desumaniza e marginaliza aqueles que não se encaixam nos padrões estabelecidos. Para superar essas barreiras, é necessário não apenas implementar políticas públicas eficazes, mas também promover uma transformação cultural que desafie preconceitos e valorize a diversidade humana.
A luta por equidade e inclusão das pessoas com deficiência deve ser uma prioridade de toda a sociedade. É preciso garantir que suas vozes sejam ouvidas, seus direitos sejam respeitados e suas vidas sejam valorizadas em toda sua plenitude. Somente assim será possível construir um futuro verdadeiramente inclusivo, onde todas as pessoas, com ou sem deficiência, possam viver com dignidade e justiça.